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11 abril, 2006

A Lei do Zeca Pagodinho

Diz uma história que numa cidade apareceu um circo, e que entre seus artistas havia um palhaço com o poder de divertir, sob medida, todas as pessoas da platéia e o riso era tão bom, tão profundo e natural que se tornou terapêutico. Todos os que padeciam de tristezas agudas ou crônicas eram indicados pelo médico do lugar para que assistissem ao tal artista que possuía o dom de eliminar angústias.

Um dia um homem desconhecido, tomado de profunda depressão, procurou o doutor. O médico então, sem relutar, indicou o circo como o lugar de cura de todos os males daquela natureza, de abrandamento de todas as dores da alma, de iluminação de todos os cantos escuros do nosso jeito perdido de ser. O homem nada disse, levantou-se, caminhou em direção à porta e quando já estava saindo, virou-se, olhou o médico nos olhos e sentenciou: "não posso procurar o circo... aí está o meu problema: eu sou o palhaço".

Como professor vejo que, às vezes, sou esse palhaço, alguém que trabalhou para construir os outros e não vê resultado muito claro daquilo que faz. Tenho a impressão que ensino no vazio (e sei que não estou só nesse sentimento) porque depois de formados meus ex-alunos parecem que se acostumam rapidamente com aquele mundo de iniqüidades que combatíamos juntos.

Parece que quando meus meninos(as) caem no mercado de trabalho a única coisa que importa é quanto cada um vai lucrar, não importando quem vai pagar essa conta e nem se alguém vai ser lesado nesse processo.

Aprenderam rindo, mas não querem passar o riso à frente e nem se comovem com o choro alheio. Digo isso, até em tom de desabafo, porque vejo que cada dia mais meus alunos se gabam de desonestidades. Os que passam os outros para trás são heróis e os que protestam são otários, idiotas ou excluídos, é uma total inversão dos valores. Vejo que alguns professores partilham das mesmas idéias e as defendem em sala de aula e na sala de professores e se vangloriam disso.

Essa idéia vem me assustando cada vez mais, desde que repreendi, numa conversa com alunos, o comportamento do cantor Zeca Pagodinho, no episódio da guerra das cervejas e quase todos disseram que o cantor estava certo, tontos foram os que confiaram nele. "O importante professor é que o cara embolsou milhões", disse-me um; outro: "daqui a pouco ninguém lembra mais, no Brasil é assim, e ele vai continuar sendo o Zeca, só que um pouco mais rico", todos se entreolharam e riram, só eu, bobo que sou, fiquei sem graça.

O pior é quando a gente se dá conta que no Brasil é assim mesmo, o que vale é a lei de Gérson: "o importante é levar vantagem em tudo, certo?" (Lei de Gerson...! dá para rir...?).

A pergunta é: É possível, pela lógica, que todo mundo ganhe ? Para alguém ganhar é óbvio que alguém tem de perder. A lógica é guardar o troco a mais recebido no caixa do supermercado; é enrolar a aula fingindo que a matéria está sendo dada; é fingir que a apostila está aberta na matéria dada, mas usá-la como apoio enquanto se joga forca, batalha naval ou jogo da velha; é cortar a fila do cinema ou da entrada do show; é dizer que leu o livro, quando ficou só no resumo ou na conversa com quem leu; é marcar só o gabarito na prova em branco, copiado do vizinho, alegando que fez as contas de cabeça; é comprar na feira uma dúzia de quinze laranjas; é bater num carro parado e sair rápido antes que alguém perceba; é brigar para baixar o preço mínimo das refeições nos restaurantes universitários, para sobrar mais dinheiro para a cerveja da tarde; é arrancar as páginas ou escrever nos livros das bibliotecas públicas; é arrancar placas de trânsito e colocá-las de enfeite no quarto; é trocar o voto por empregos, pares de sapato ou cestas básicas; é fraudar propaganda política mostrando realizações que nunca foram feitas: a lógica da perpetuação da burrice.

Quando um país perde, todo mundo perde. E não adianta pensar que logo bateremos no fundo do poço, porque o poço não tem fundo.

Parafraseando Schopenhauer: "Não há nada tão desgraçado na vida da gente que ainda não possa ficar pior".

Se os desonestos brasileiros voassem, nós nunca veríamos o sol. Felizmente há os descontentes, os lutadores, os sonhadores, os que querem manter o sol aceso, brilhando e no alto.

A luz é e sempre foi a metáfora da inteligência. No entanto, de nada adianta o conhecimento sem o caráter.

Que nas escolas seja tão importante ensinar Literatura, Matemática ou História quanto decência, senso de coletividade, coleguismo e respeito por si e pelos outros.

Acho que o mundo (e, sobretudo, o Brasil) precisa mais de gente honesta do que de literatos, historiadores ou matemáticos. Ou o Brasil encontra e defende esses valores e abomina Zecas, Gérsons, Dirceus, Dudas, Rorizes todos os que chamam desonestidades flagrantes, de espertezas técnicas, ou o Brasil passa de país do futuro para país do só furo.

De um Presidente da República espera-se mais do que choro e condecoração a garis honestos, espera-se honestidade em forma de trabalho e transparência.

De professores, espera-se mais que discurso de bons modos, espera-se que mereçam o salário que ganham (pouco ou muito) agindo como quem é honesto.

A honestidade não precisa de propaganda, nem de homenagens, precisa de exemplos. Quem plantar joio, jamais colherá trigo.

Quando reflexões assim são feitas cada um de nós se sente o palhaço perdido no palco das ilusões. A gente se sente vendendo o que não pode viver, não porque não mereça, mas porque não há ambiente para isso.

Quando seria de se esperar uma vaia coletiva pelo tombo, pelo golpe dado na decência, na coerência, na credibilidade, no senso de respeito, vemos a população em coro delirante gritando "bis" e, como todos sabemos, um bis não se despreza. Então, uma pirueta, duas piruetas, bravo ! bravo !

E vamos todos rindo e afinando o coro do "se eu livrar a minha cara o resto que se dane".

Enquanto isso o Brasil de irmã Dulce, de Manuel Bandeira, do Betinho, de Clarice Lispector, de Chiquinha Gonzaga e de muitos outros heróis anônimos que diminuíram a dor desse país com a sua obra, levanta-se, caminha em silêncio até a porta, vira-se e diz:

- "aí está o meu problema: eu sou o palhaço".

Professor Nailor Marques Júnior

08 abril, 2006

Laranja Mecânica



Será "A Laranja Mecânica" um elogio ou um manifesto contra a violência e contra a estrutura social contemporânea?


Laranja Mecânica (A Clockwork Orange) é uma escolha que pode levantar dúvidas e levar a questões da mais diversa índole. O seu realizador, Stanley Kubrick, é apontado por muitos como um símbolo da desconstrução da realidade. Por outros é tido como a consciência mor de uma sociedade que caminha, apressadamente, para a extinção de valores e da própria humanidade.
Perseguido por críticas hostis, Kubrick viria a afirmar que: "Ainda que exista uma grande hipocrisia a respeito da violência, todas as pessoas estão fascinadas por ela. Afinal, o homem é o assassino mais cruel que jamais pisou o planeta". E é esta violência, filmada de maneira condenatória e nunca apologética, que Kubrick nos mostra de maneira crua.
Laranja Mecânica é um filme de antecipação, centrado nas "aventuras de um jovem cujas principais inclinações são a violência, a violação e Beethoven". Sendo um regresso ao triângulo sexo/violência/morte que o realizador já abordara em filmes anteriores (com Lolita e Dr. Estranho Amor como referências incontornáveis).
O filme atualiza e encerra de maneira definitiva a questão da violência e dos laços que a ligam ao cinema e a todas as suas formas de quase teatro em que o filme se desenrola. Foi com esmero que Kubrick trabalhou a vertente visual, com o uso perfeito da câmara lenta e das grandes angulares.
Proibido em vários países, devido à suposta apologia da brutalidade que veiculava (Burgess, o autor do livro que deu origem ao argumento, defendia que: "mais vale optar pela violência do que não optar por nada")), o filme tornou-se polémico por descrever um futuro, não muito longínquo, onde os procedimentos violentos se exercem desde as mais altas esferas do Governo sobre os cidadãos.
A ação acompanha o percurso expiatório de Alex, que vai da imaginativa prática do mal (com todas as suas nuances, e liderando um gang) à prisão. Depois de encarcerado, e já conhecido como 655321, Alex transforma-se numa espécie de angelical alter-ego e deixa-se submeter a um tratamento (o Processo Ludovico), que o limpa de todos os seus instintos agressivos (mesmo os de autodefesa), em troca da redução da pena.
Segue-se uma segunda fase em que Alex paga, com o corpo, todo o mal que fizera (a vingança das suas vítimas segue-se, em desfile) e a sua recuperação institucional ao mais alto nível, após uma reviravolta política. "Crime, castigo e recompensa" parece ser o espírito norteador desta metáfora sarcástica e iconoclasta, mas terrivelmente verdadeira, sobre a ironia inerente à relatividade e transitoriedade dos fatos e às prerrogativas do poder.
Revisto nos nossos dias, Laranja Mecânica revela-se como uma obra premonitória, imbuída, passados trinta anos (recorde-se que o filme é de 1970), do culto niilista e radical da violência e da destruição que hoje vem ao de cima, e demasiado frequentemente, durante as manifestações anti-globalização, só para dar um exemplo.
Ao mesmo tempo, Laranja Mecânica está para lá desta análise linear do argumento e do filme. Não nos podemos abstrair da obra total de Kubrick nem podemos considerar cada filme como um pedaço isolado, desligado da criação global. Não podemos esquecer que a mais complexa e completa obra cinematográfica dos últimos cinquenta anos é do mesmo autor: 2001 Uma Odisseia no Espaço. Seria redutor interpretar Laranja Mecânica como uma mera crítica da violência.
Toda a filmografia de Kubrick aponta para o "herói" solitário que deambula, perdido, por labirintos que são tecidos à sua volta. Geralmente não consegue controlar o destino que o aguarda, e de dédalo em dédalo vai tentando procurar uma saída. Saída esta que pode apenas significar seguir a sua vida. Um labirinto é a analogia perfeita de quem se encontra perdido, de quem não vislumbra as entradas e as saídas.
Ao mesmo tempo, e para lá de toda a iconoclastia e crítica da humanidade que Kubrick nos legou, os seus filmes labirínticos, fechados, sem que se vislumbre o princípio ou o fim, propõem o universo como algo circular, a esfera perfeita, um infinito que se prolonga no reflexo especular dos espelhos que o ladeiam.
Demiurgo, excêntrico, génio, muitas são as palavras usadas para descrever Kubrick ou para adjectivar a sua obra. Os seus filmes e os seus argumentos proporcionam análises detalhadas e complicadas, muitas vezes sem que se vislumbrem soluções. São obras perfeitas de fruição e interpretação individual.



Sinopse


Numa Inglaterra vagamente futurista e atingida por uma importante crise social, um jovem, Alex DeLarge, chefe de um bando, vive de diversas rapinas apesar da vigilância policial de que é objecto. Com os seus companheiros, os Droogs, prossegue as suas escapadas criminosas: moer de pancada um mendigo; guerra entre gangs; assalta uma casa isolada onde vive um escritor de esquerda, violação da esposa e sova violenta no homem. Todas as suas acções são conduzidas num tom trocista não desprovido de uma certa consciência estética.
De regresso a casa, Alex recebe a visita de um delegado da assistência social, ser abjecto, que o avisa que se acautele com a sua violência. Depois deste sair, Alex entrega-se à sua distracção favorita: a música de Beethoven que escuta religiosamente. Por fim, arranja duas jovens "apanhadas" num Drugstore com quem organiza uma mini orgia.
No dia seguinte, quando os membros do seu bando começam a estar fatigados da sua tirania, ele condu-los a casa de uma mulher só, a mulher dos gatos, que assassina, em virtude da forte resistência que esta lhe opôs. Quando está para fugir é traído pelos Droogs e a polícia prende-o.
Condenado a uma pesada pena, a sua hipocrisia atrai as boas graças do capelão, quando ele apenas sonha com violência e fornicação. Astuciosamente aceita prestar-se ao tratamento Ludovico. Esta terapia de choque foi aperfeiçoada por médicos para libertar o país dos delinquentes. É um método de lavagem ao cérebro que anula todo o livre-arbítrio na vítima. Este tratamento, destinado a fazer abominar a violência e o espectáculo da violência àquele que a praticava tem perfeito êxito. Mas um erro de programação torna igualmente insuportável a Alex a música de Beethoven.
Liberto, Alex volta para casa onde os seus pais já o substituíram por um valentão presunçoso. Excluído, rejeitado, perdido, vagueia por Londres e sofre em contrapartida a violência que usara no passado. Vítima da vingança dos mendigos, depois da dos seus antigos camaradas de novo colaboradores da polícia, amachucado, ferido, refugia-se por acaso na casa do escritor de esquerda. A mulher tinha morrido em consequência da violação e o escritor está paralítico em virtude das pancadas recebidas. Este reconhece o agressor e entrevê ao mesmo tempo a possibilidade de se vingar e de criar problemas ao governo empurrando Alex para o suicídio.
A Nona Sinfonia de Beethoven que Alex preferia vai ser o instrumento desse plano: de facto, ao escutá-la, Alex atira-se pela janela.
Mas sobrevive e por sua vez é o governo conservador que conta utilizar o jovem contra a oposição. No hospital tratam-no, prestam-lhe todos os cuidados e fazem-no entrever um futuro promissor. Alex concorda hipocritamente, bem decidido a utilizar a sua nova posição para satisfazer o seu gosto de violência e sexo.